quinta-feira, 9 de junho de 2011






Como sempre, nada era ou poderia ser planejado. Nem aquela tarde de uma sexta-feira parisiense, sentado no Café de Flore, tampouco o chocolate quente consumido naquele lugar, o preferido de Pam, o meu “amor cósmico” Pamela Courson. Muito menos que logo seria noite, a minha última noite. Pouco depois estava eu ali, olhando para o meu corpo inerte na banheira branca do nosso pequeno, mas confortável apartamento no terceiro andar do número 17 da Rue Beautreilles. Não conseguia me mexer. Mirei mais uma vez meus cabelos desgrenhados e os olhos acinzentados, sempre meio perdidos. Pensei em como toda a minha aura de símbolo sexual, de rock star ácido e messias de uma geração ávida por liberdade tinha terminado seus dias ali, em uma calma manhã de sábado. Era 3 de julho de 1971.



Do que morri? Dizem de tudo, e me divirto com as mais absurdas hipóteses a ponto de não querer confessar a verdade nem desmentir os boatos. Talvez tivesse, sim, ido ao cinema na noite anterior e, ao voltar para casa, senti o intensificar das dores no peito, rotineiras havia alguns dias, sinal da parada cardíaca que me derrubaria em poucas horas. Mas esqueça o cinema. Se eu tivesse de desvendar a minha própria morte, apostaria muito mais no Rock and Roll Circus. O bar onde, naquela noite, me abasteci de muita vodka e cerveja. Meu erro grotesco foi confundir as substâncias e, em vez de consumir a cocaína habitual, ter ingerido a dose cavalar de heroína comprada para Pam; o que me deixou ali em coma, no banheiro. Desesperados, os traficantes e Sam Bernett, o gerente do local, carregaram meu corpo para o apartamento e o jogaram na banheira na tentativa de me reanimar; mas, como se sabe, sem surtir efeito.



Uma conclusão estranha para a mais estranha das vidas, como gosto de dizer. Por outro lado, 40 anos depois, ainda sou uma pessoa inteligente, sensível, com a alma de palhaço. Mas não tenho mais a energia dos 27 anos de idade, que me impeliu a jogar tudo pelos ares. A maturidade enfim chegou. Lamento as noites perdidas e os anos perdidos, mas, depois daqueles quatro anos de sucesso, loucuras, agentes, empresários e advogados, confesso que minha cabeça entrou em parafuso e não havia nada a fazer a não ser mandar tudo à merda.



Por outro lado, consigo hoje ter uma visão mais clara e ampla da existência. Já falo com tranquilidade sobre detalhes de infância ou família. Aliás, se ainda interessa, nasci em uma quarta-feira, 8 de dezembro de 1943, na cidade de Melbourne, na Flórida. Era filho de Clara Clarke e de George Stephen Morrison. Tá certo: diria em uma entrevista anos mais tarde que os dois estavam mortos. Mas essa foi uma das maneiras de incitar a rebeldia contra a ordem e a educação recebida, orientada a impor o american way of life. Também posso entender agora que meu pai, um almirante da marinha, não era de uma geração preparada para ter um filho astro do rock, e ainda com o apelido de rei lagarto. Mas são coisas que só compreendemos depois.



Fico satisfeito, assim, por ter me desvencilhado daquela imagem criada em torno de mim e com a qual colaborei – de modo inconsciente ou bem consciente. Desde a adolescência e dos tempos no George Washington High School, e mais tarde na escola de cinema da Universidade da Califórnia (Ucla), mergulhei em O nascimento da tragédia, de Nietzsche, consumi William Blake, Rimbaud e, assim como todos eles, construí minhas próprias máscaras. Às vezes penso: fui longe demais! Sentia as pessoas projetando em mim suas fantasias para se tornarem reais e obedecia aos impulsos.



Mas, longe da imagem do bêbado, ou do louco vestido com a calça de couro preta, fui, do meu jeito, um cara comum, carinhoso e gentil. Uma vez ou outra, especialmente quando estou entediado, deixo minha mente vagar de volta a alguns episódios. Eles trazem a certeza de algo que sempre fui: tímido, inseguro e possessivo.


Quando eu já vivia na Califórnia, em 1965, e namorava Mary Werbelow, o meu primeiro grande amor – e o maior, como tenho certeza às vezes –, precisava ligar para ela todos os dias. O excesso de atenção era, nesse caso, uma necessidade de ter certeza de que o amor dela permanecia igual por mim. Mas essa insegurança também me levou a brigas imaturas, a traições de minha parte e ao fim. Mas não posso reclamar. Para ela, fiz os versos eternizados com os Doors: Bela amiga / Este é o fim / Minha única amiga, o fim / Dos nossos elaborados planos, o fim / De tudo o que está de pé, o fim / Sem segurança ou surpresa, o fim / Nunca mais olharei em seus olhos... de novo.



No verão desse mesmo ano, quando perambulava pela praia de Venice, reencontrei Ray Manzarek. Após ouvir um dos meus poemas, ele disparou: “Vamos formar uma banda”. Tentei explicar que era tímido e que minha voz não era das melhores. Mas fui convencido com um argumento medíocre, explicitando o fato de Bob Dylan ter conseguido também sem ter a melhor das vozes.



Abrimos as portas sugeridas por Blake, levamos o The Doors por todo o país e pela Europa, ganhei muito dinheiro, prestígio; embarquei em profundas viagens lisérgicas, vivi com Pamela, a amei e também a odiei. Fui preso, acusado de profanação pública e de exibir meus órgãos sexuais durante o show. Definitivamente, me irritei com tudo, especialmente com a América daquele período. Queriam me condenar não por um ato em si, mas pelo meu estilo de vida. Infelizmente, todos se concentraram demasiadamente nos meus genitais e esqueceram o resto. Além de ser um jovem saudável, com braços, pernas, tórax, olhos e nariz, tinha também um cérebro.



Repetindo: ainda é difícil me decifrar, e nem pretendo mais. Tenho 67 anos e pouca paciência para acompanhar as incessantes peregrinações feitas todos os dias ao meu túmulo no Père-Lachaise. Às vezes, aproveito para tomar um pouco do vinho deixado lá pelos fãs. Bom pretexto para dar umas risadas e oferecer uma taça à Janis ou ao Hendrix nas poucas visitas feitas. Além disso, o espírito de um xamã que invadiu a minha alma, fazendo companhia desde os meus 5 anos de idade, quando assisti a um acidente na estrada com um comboio carregado de índios, já partiu há longo tempo. O alcoolismo e o abuso de drogas é um pormenor. Queria mesmo era ser reconhecido por ter sensibilidade, inteligência e senso de humor. Claro, não posso negar: passei ótimos momentos e, durante os anos à frente do Doors, conheci mais gente interessante do que durante todo o resto da existência. Mas, se pudesse recomeçar, procuraria vivenciar a quietude do pequeno e inalterado artista, caminhando pelo seu estreito caminho. Afinal, um homem está à porta. Boa sorte, e não se metam em problemas.



LIGHT MY FIRE
James Douglas Morrison, ou Jim Morrison, lançou, em vida, com o The Doors, seis álbuns – The Doors, Strange Days, Waiting for the Sun, The Soft Parade, Morrison Hotel e L.A. Woman –, emplacando sucessos como Light My Fire, The End, Roadhouse Blues, Riders on the Storm, entre muitos outros. Publicou em vida quatro livros de poemas – com destaque para Uma oração americana – e gravou muitas horas de poesias em estúdio. Parte deste material se transformou postumamente no álbum An American Prayer, musicado pelos companheiros de banda Ray Manzarek, Robbie Krieger e John Densmore. Morreu em Paris, em 3 de julho de 1971, aos 27 anos, de ataque cardíaco, segundo o contestado atestado de óbito. Jim Morrison foi enterrado em Paris, e ninguém viu o corpo com exceção de Pamela Susan Courson, que morreu de overdose de heroína três anos depois, em 1974, nos EUA.



Este artigo se utiliza de fatos reais e pesquisa, incluindo biografias, vídeos, poemas e inúmeros trechos de entrevistas concedidas por Jim ao longo da carreira

Artigo retirado do site www.revistadacultura.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário